Glória Moreira Salles e Mariana Amato
10 de fevereiro de 2025
A mãe
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Sempre fui uma pessoa ativa, que ambiciona muitos projetos para a vida e, um deles, do qual nutria desde a infância, era o de constituir uma família. E à medida que me tornava adolescente e, futuramente, uma mulher, passei a me imaginar na presença de uma família ao meu lado. Não contava com o sentido subjetivo da palavra perfeição. Tornei-me mãe aos 21 anos. Na época contava com o apoio de mulheres experientes ao meu lado. Assim, pude lidar com as inseguranças de uma jovem mãe de primeira viagem. Fui descobrindo, com o tempo, o que minha filha e eu precisávamos. Tatiana foi a minha primeira. Aos poucos nossa relação se consolidou e, em 1976, nasceu Mário, meu segundo filho. Desta vez, já sabia mais sobre os segredos da maternidade, mesmo assim, uma nova relação era, ali, estabelecida. Em 1979 eu, então, com 27 anos, dei à luz a minha terceira filha, Mariana. Assim como nas outras gestações, na de Mariana eu não tive nenhuma intercorrência. Porém, foi durante essa gestação que meu sexto sentido se aguçou. Ele me alertava de que algo, desta vez, poderia ser diferente. Mariana nasceu de um parto normal e tranquilo.
Lembro que vinte dias se passaram e recebi um telefonema do meu ginecologista, que também era meu tio. Ele pedia para que eu fosse ao consultório com Rogério, pois tinha algo que precisava dividir comigo. E, então, foi quando soube que Mariana havia nascido com T21. Não havia percebido nada de diferente quando Mariana nasceu. Ela tinha olhos puxados, assim como meu segundo filho. Não havia notado nada de diferente nela, que pudesse indicar algo. Naquele momento, o chão abriu sob meus pés. Senti um assombro, do qual pensava que não fosse mais me recuperar. Voltei para casa e lembro de subir as escadas e ver o quarto de Mariana fechado. Pensei comigo: se não entrar agora, eu não entro nunca mais. Isto é, se não passar por essa porta agora, eu não assumo minha filha e os desafios que estão por vir.
E eu entrei, com um misto de medo, mais do que qualquer outra coisa. Peguei Mariana no colo, e daí saí em busca de todo tipo de terapia que existia. Desse dia em diante, não parei mais. Nem por um minuto. Na década de 80, pouco havia sido publicado sobre síndrome de Down. Naquela época, Mariana foi a primeira geração de crianças a receber estimulação precoce. Íamos a fonoaudióloga, fisioterapeuta, fazíamos terapia ocupacional, estimulação com cores, cheiros e outras ferramentas que trabalhávamos com ela em casa. Na pré-escola, Mariana foi a uma escola regular chamada "Externato Bem me Quer", e lá ficou até os cinco anos de idade.
Posso dizer que, aos 27 anos, quando me torno mãe de Mariana, passo a exercer também um olhar ainda mais atento para a construção física e psíquica de uma criança, participando de maneira mais ativa de suas conquistas e desafios. Mariana e eu nos tornamos uma dupla, onde minha expectativa era a de criar a possibilidade, e a dela, mergulhar e experienciar a vida a partir disso.
Naquela época, os pais de crianças com T21 se juntavam como um grande grupo de apoio. Fortalecendo-se em encontros e no conhecimento adquirido na prática com os filhos. Numa época em que não existia a internet, sabíamos de um caso e, automaticamente, nos enveredávamos a esses pais de primeira viagem, para que soubessem que não estavam sozinhos. Era um momento em que o mundo ainda precisava validar a existência dessas crianças.
Assim como fiz com meus outros dois filhos, fiz questão de ser parte no desenvolvimento deles. Mas, sabia que não poderia fazer isso sozinha. Fala-se muito de 'redes de apoio', acho que o que fazíamos na época era muito próximo disso, e foi o que me fortaleceu. Entendo que em diferentes momentos da vida de uma criança essa rede de apoio se modifica. Na fase inicial da vida, a segurança, a alimentação, o carinho, as necessidades pessoais e um ambiente que favoreça o desenvolvimento físico e psíquico é o que consagra o seu bem-estar. Logo, os responsáveis por essa façanha são os pais, os avós, tios, irmãos e empregados, que também fazem parte da família. Quando crescem, somam a rede, as instituições, como as escolas, os colegas de classe, professores, terapeutas, os diferentes cursos que fazem, as amizades, e o lazer. E quando se tornam adultos, essa rede é ampliada e, para os pais, novas tarefas são dadas, entre elas, a figura do que gosto de chamar de porto seguro. Ou seja, ser responsável por garantir que encontrem sua vocação, escolhendo uma faculdade, promovendo viagens, que auxiliem no seu crescimento pessoal e também garantindo com a presença de que esteja ali para o que precisarem. Essa escuta atenta permite que nos capacitemos para entender ainda mais sobre a busca de cada um. E foi assim que dividi meu tempo e aprendizado com os meus três filhos; entre as minhas necessidades pessoais e as da minha família.
Às vezes, os pais assumem um papel central no desenvolvimento do filho. É importante que no período de maior vulnerabilidade da criança esse papel exista, até mesmo para a garantia da segurança e proteção dela. Entendo que, muitas vezes, queremos eternizar essa responsabilidade, pois ela nos dá um protagonismo ainda maior diante da vida. Mas tenho certeza que o que os pais mais querem para um filho é que ele encontre a segurança em si, para que cada um possa protagonizar a própria vida. E com uma criança que nasce com deficiência intelectual isso não é diferente.
Eu me abastecia de novidades e não queria parar, no sentido da busca para desenvolver todas as habilidades de Mariana. Meu incômodo começou a surgir quando me deparei com um processo engessado. Em que as pessoas, leia-se terapeutas, profissionais, pais, colocavam o limite para a criança e não ela mesma. É como se eles autorizassem até onde o outro poderia chegar.
O mundo carece de códigos pré-estabelecidos e, sem eles, não temos chance de sermos inseridos nele. Sentia que aos olhos dos terapeutas se estabelecia a ideia de que Mariana seria tratada como uma eterna criança. Totalmente invisibilizada e sem espaço de troca, muito menos capaz de discutir seus anseios e suas necessidades. Mas eu não me rendi.
Em 1994, juntamos um grupo atuante na causa e em um congresso, em Buenos Aires, escrevemos uma carta de intenção para a criação de uma Federação das Associações de Síndrome de Down do Brasil. A intenção era fortalecer as associações e trabalhar em conjunto com todos. Fiz parte dela como relações públicas durante anos.
No dia a dia, entrava cada vez mais em contato com profissionais que trabalhavam com a Mariana, que assim como eu, não queríamos mais fazer 'de novo'. O que queríamos era construir 'esse novo'. E tínhamos esse gás e esse desejo de trabalhar para o melhor, na luta da pessoa com T21. Em 1996, nasceu, portanto, a Associação Carpe Diem. Um grupo de pessoas que não media esforços, cuja visão de mundo era romper com paradigmas impostos. Onde, esses limites, muitas vezes, vinham de dentro, trazidos por profissionais e familiares.
Estar no centro das discussões.
Intuí que todo o desenvolvimento das habilidades de Mariana resumiam-se em capacitá-la às demandas da sociedade, e não às demandas criadas por ela mesma. Como um exercício diário, colocado em prática desde seu primeiro dia de vida, aprendi a escutar seus anseios, suas necessidades. E, crescemos juntas, observando esses desejos serem transformados. Mariana sempre existiu a partir de suas vontades, que realizadas, apontavam para sua autoestima. Hoje, sou apenas uma testemunha deles.
É importante entender quem está por trás do benefício da inclusão de uma pessoa com deficiência intelectual. Esse foi um dos pontos-chave, onde ressoava meu incômodo. Como pensar na inclusão, sem que fossem ouvidos os interessados? Os princípios que norteavam a Carpe Diem era jogar luz ao protagonismo dessas pessoas, acreditando no direito de cada um ao seu projeto de vida e de uma sociedade comprometida com a diversidade e acessibilidade para todos.
Na Carpe Diem encontrei pessoas que abraçaram a ideia de colocar a pessoa com T21 no centro da conversa. Buscamos refletir, discutir e modificar o entendimento de que o que é importante precisa vir do outro, e, então, só assim é que passa a existir. Queríamos colocar em evidência a autonomia e, mais do que isso, que as demandas das pessoas com deficiência intelectual fossem ouvidas. Sabíamos lá no fundo, que um dia deixaríamos de existir, porque a associação só existia porque existia a necessidade de transformação. E foram 20 anos que resultaram num legado, que impactou a vida de centenas de pessoas.
A partir desse ideal, motivamos cabeças pensantes, que ao meu lado, ousavam sonhar junto. Não medimos esforços em projetar e movimentar conceitos até então estagnados, que eram oferecidos às pessoas com T21. Nossa meta era o reconhecimento em patamar de igualdade de direitos e acessos a eles.
Outro grande projeto, e feito, da Carpe foi o lançamento de uma versão bilíngue, português-inglês, do livro "Mude seu Falar que eu mudo meu Ouvir" na ONU, quando fomos convidados para participar do primeiro Dia Internacional da Síndrome de Down, em 21 de março de 2012. Foi um divisor de águas. O livro trazia a transcrição literal da fala de jovens, que foram instigados a discutir sobre a deficiência intelectual e as condições de acessibilidade por eles mesmos. Sem nenhuma correção gramatical. Além de trazermos o nome de cada um desses jovens que, como qualquer outro, tem desde ambições simples a elaboradas.
O que a Carpe sempre preconizou era ver a pessoa antes da sua deficiência. Enquanto o mundo vê apenas a deficiência e esquece desse sujeito. Mas primeiro nasce uma criança, para então, ela receber um diagnóstico. O que mais se ouve por aí é … Ele tem esse diagnóstico, o que eu vou fazer a partir disso? Não, nada disso! Antes, tem uma pessoa ali, que precisa se desenvolver. Depois é que vem a deficiência.
Todo pai acredita no filho com deficiência. Acredita que ele não será refém da síndrome e que reunirá ações que contradizem as estatísticas. Mas o que isso quer dizer? Eu sempre dizia que acreditava em Mariana. Há uns anos atrás eu me dei conta de que eu confio na Mariana. Existe uma brutal diferença entre acreditar e confiar. E conto como me dei conta disso.
Um dia, Mariana se perdeu no metrô e enfrentou o pior cenário para qualquer paulistano: a Estação da Luz, às seis da tarde. Foi então que recebi um telefonema dela dizendo que estava perdida. Eu, do outro lado da linha, respirei fundo e pensei comigo: vamos olhar pelo lado positivo, ela tomou uma atitude, e isso é exatamente o que eu quero dela, foi pelo que lutei nesses 45 anos! E, então, disse eu a ela: vai lá fora, pega um táxi e quando você entrar no táxi, você me liga. Ela ouviu atentamente minhas instruções e quando terminei me disse que uma moça que estava ao seu lado queria falar comigo. Essa moça se dispôs a levar a Mariana para casa. Eu a agradeci demais por isso, mas pedi que ela fizesse uma outra coisa por mim: que a pusesse no sentido do metrô que a levaria para casa. Eu queria que ela voltasse sozinha. Isso fazia parte do aprendizado. Eu sabia também que ela chegaria muito nervosa em casa. Mesmo assim, me mantive calma. Esperei ela entrar pela porta. Quando chegou, fiz a maior festa. Enumerei todos os feitos e a parabenizei pelo que tinha conseguido vencer. A abracei e fiz um estardalhaço por sua conquista. Então, mudei de assunto e ela foi tomar banho.
No dia seguinte, era o dia da terapia semanal de Mariana e ela sempre ia de metrô. Eu sabia que ao acordar ela não ia querer ir de metrô, devido a última experiência. Dito e feito, ela estava com medo. Pediu para que fosse com ela. Mas eu insisti para que ela fosse sozinha, sabia que se ela não fosse dessa vez, não iria nunca mais. Eu, então, disse que a acompanharia até a porta do metrô. E assim fiz. Não mudei de ideia. E ela foi. E foi ali, que eu passei a confiar nela. Porque eu sei que ela é capaz de se virar. Ela já se perdeu outras vezes, e se virou. Nesse momento, eu aprendi que acreditar era muito pouco. Eu, na verdade, confiava nela.
Mariana já trabalhou em vários locais. Muitas vezes, incomodada com a repetição das tarefas e com a falta de desafios, pedia para sair e ir para outro trabalho. Em 2009, Mariana morou durante nove meses em João Pessoa, Rio Grande do Norte, porque aquele era o seu projeto de vida naquele momento. Para isso, toda uma rede de apoio foi tecida junto com ela, para que essa experiência desse certo. Recebeu suporte terapêutico, aprendeu a fazer uso do cartão de crédito, combinou com a Lilian (uma das idealizadoras do projeto "Pipas no Ar - Trabalhando a Sexualidade de Pessoas com Deficiência") como seria a divisão de tarefas e despesas na casa onde foram morar. Lá, ela trabalhou em uma ONG, continuou com suas atividades de psicopedagogia, como leitura e escrita, e fui visitá-la somente dois meses depois. Recebi algumas críticas de outros pais, que me perguntaram como tive coragem. Ora, se meus outros filhos tiveram essa oportunidade, por que não teria Mariana?
Quando perguntei para ela como foi a experiência de morar em João Pessoa, ela me respondeu: foi bom, fiz minhas aventuras que foi gostoso, andava de mototáxi, a balsa, foi legal. E, o que mais gostou, perguntei. Ela me respondeu: Da experiência de conviver com outras pessoas, trabalhei com a Lili, que era de uma Ong, APOICHA. Eu dava suporte para as crianças e precisava apoiar. Dava suporte para as mães que têm filhos com síndrome de Down. Morava com a Lili na casa dela, arrumava minhas coisas dentro do armário e a casa. Fui pro supermercado porque eu dividia as despesas. Foi muito importante para eu ter autonomia.
A fase da qual hoje me encontro nos desafios que a vida me trouxe é o de envelhecer. É sabido que as pessoas com T21 envelhecem precocemente. Olho para trás e percebo como foram importantes as escolhas de vida que fizemos pela Mariana e as que ela fez por si própria. Ter podido iniciar uma estimulação precoce e ter tido a oportunidade de trabalhar sua autonomia, seu protagonismo, sabendo fazer diversas escolhas, atualizando constantemente seu projeto atual de vida, proporcionaram à Mariana maior flexibilidade ao que virá pela frente.
Meus esforços, atualmente, estão em que, neste processo do envelhecimento, Mariana tenha menos perda possível. Para isso, buscamos terapias que a ajudem a melhorar o seu desempenho. Hoje, ela faz Muay Thai três vezes por semana. Faz psicoterapia com a Nancy, há 34 anos. Frequenta um grupo de jovens com T21, que é coordenado por duas pessoas maravilhosas, e a elas cabe a função de dar desafios para que esse grupo cumpra. Cada vez com um novo desafio, sempre voltados para a autonomia. Mariana aprendeu a pegar o metrô com o grupo.
Acredito que para haver uma verdadeira inclusão são necessárias várias etapas. Ainda é preciso sensibilizar a sociedade para que ela possa ser transformada. Mas não podemos esquecer que a pessoa com deficiência é a verdadeira protagonista dessa transformação. Se ela tem voz própria, ela mostra as suas competências e transforma o olhar da sociedade. Não é mais um objeto passivo, mas um sujeito atuante. Assim, seu protagonismo é legítimo. Mesmo que necessite de apoios! E quem não necessita?
O que vejo ao longo deste meu caminho com a Mariana é que chega um determinado momento em que as famílias desistem. Isso não pode acontecer, depois de todo o caminho percorrido e as conquistas ocorridas. Não podemos morrer na praia. Até porque, um dia vamos faltar. E, quem estará por eles?
O meu sonho é que Mariana possa existir para além de mim. Saber que seus passos são dados com firmeza e convicção por ela mesma. Que ela não hesite em buscar ajuda com os irmãos e com o pai e que seja autora de suas próprias escolhas.
Para o mundo lá fora eu gostaria que escutassem mais a pessoa com deficiência intelectual, que a trouxesse para perto e as deixasse decidir como devem viver. Cada pessoa é única e esse é o grande tesouro escondido que cada um guarda consigo. Esse poder de sermos um.
A filha
Me chamo Mariana Amato, eu sou uma mulher de 45 anos, moro com meus pais, em São Paulo.
Gosto de fazer Muay Thay, de fazer terapia, de participar do grupo de adultos com autonomia e fazer Kumon.
Hoje saio com meus amigos e gosto de ir em festas.
No meu dia a dia eu vou dormir na casa da Marie, ela foi criada pela minha avó. Eu saio com ela, vamos almoçar no shopping e também vamos no Karaokê, cinema.
Toda terça-feira e quinta-feira vou para minha terapia de metrô. Saio de casa e vou andando até a estação Higienópolis-Mackenzie, depois desço na estação Paulista, faço baldeação para Vila Prudente. De lá vou até a estação Chácara Klabin, pego a linha Lilás e desço na estação Eucalipto. Vou caminhando, passo em frente ao Shopping Ibirapuera, atravesso a rua quando o farol estiver verde. Também volto para casa de metrô.
Eu gosto muito da minha independência, porque me viro sozinha. Já me perdi uma vez e pedi ajuda para o segurança, eu resolvi tudo. Fiquei um pouco aflita, mas deu tudo certo. A minha mãe não parava de ligar, foi me ajudando a encontrar o caminho de volta. Quando cheguei em casa, cheguei nervosa e minha mãe me acalmou e disse “Mariana você é o máximo!” Fiquei bem!
Gosto de ter independência porque me virar sozinha.
Glória Moreira Salles e Mariana Amato
Glória Moreira Salles Mãe de Mariana Amato, 45 anos e com síndrome de Down, ex-diretora da FBASD, ex-presidente da Associação Carpe Diem, Diretora da REBRATES (Rede Brasileira do Terceiro Setor). Mariana Amato Ex-diretora FBASD, faz parte do grupo de Auto Defensores de São Paulo, guia da Expedição 21.